A maioria dos mais informados vai concordar que atravessamos um
cenário complicado no evangelicalismo brasileiro. Todos sabem que a
igreja cresceu demais nas últimas décadas, mas ela ainda busca um
amadurecimento. Movimentos mais contextualizados e grupos voltados para a
evangelização do país coloriram o cenário evangélico brasileiro nos
últimos anos. Todavia, tanta euforia e eferverscência também é sinal de
atenção. O fato é que a igreja precisa achar um ponto de equilíbrio
entre quantidade e qualidade. Sem o estudo sério e fundamentado das
Escrituras Sagradas teremos problemas insolúveis a curto prazo em nossa
realidade protestante tupiniquim. Infelizmente, ainda há grupos em nosso
contexto de fé que desprezam o preparo teológico, há outros que são tão
estranhos que vivem na fronteira entre a categoria de seita e
denominação. Há muito trabalho a ser feito para a consolidação de uma
tradição evangélica autêntica no Brasil.
Ninguém pode negar que essa tarefa de consolidação
passa necessariamente pela referência máxima da cristandade e dos
evangélicos: as Escrituras Sagradas. A compreensão da Bíblia é
absolutamente fundamental para que se tenha uma igreja séria e cristãos
espiritualmente saudáveis. Por incrível que pareça, o sinal de que nem
tudo vai bem no cristianismo “tropical abençoado por Deus e bonito por
natureza” é que há muitos textos lidos e enfatizados em nossa tradição
evangélica que são malcompreendidos, gerando inclusive crises e
problemas pessoais em muitos cristãos sérios e sinceros. Vejamos alguns
exemplos.
Muita gente tem sofrido com seus familiares ao ler o conhecidíssimo
texto de Atos 16.31: “Crê no Senhor Jesus, e tu e tua casa sereis
salvos” (A21 – Versão Almeida 21). O problema desse texto é que muitas
pessoas pensam que estamos diante de uma promessa divina de que todos os
nossos parentes próximos serão salvos. A verdade é que o texto não
ensina isso! Em primeiro lugar, é importante destacar que como texto
narrativo histórico, o versículo não pretende ser normativo. Ou seja, o
relato de alguma coisa que acontece não necessariamente é norma para
toda a igreja. Aqui vemos uma promessa que foi dada ao carcereiro de
Filipos e não para todos! A ele foi dito que ele e “os de sua casa”
(NVI) seriam salvos. No caso dele, isso talvez tivesse incluido servos
ou empregados, já que a “casa” de alguém nos tempos bíblicos incluía
gente que não era da família de sangue. Portanto, a verdade é que
ninguém pode assegurar a conversão de seus parentes com base nesse
texto. Se esse fosse o caso, ninguém veria um parente próximo morrer sem
converter-se a Cristo na história, mas sabemos que isso não se
verifica. Além disso, o próprio Jesus deixou claro que muitos cristãos
até perderiam suas famílias por causa do evangelho: “E todo o que tiver
deixado casa, ou irmãos, ou irmãs, ou pai, ou mãe, ou mulher, ou filhos,
ou campos, por minha causa, receberá cem vezes mais e herdará a vida
eterna.” (Mt 19.29 – A21). Leia também Mateus 10.35,36. Como se vê, se
nos fosse prometida a conversão de todos os parentes próximos estes
textos de Mateus não fariam sentido.
Quase que na mesma linha de pensamento, muitos evangélicos,
principalmente pais e mães, ficam literalmente desesperados diante de
Provérbios 22.6 (ARC): “Instrui ao menino no caminho em que deve andar, e
até quando envelhecer não se desviará dele”. O que geralmente se
entende desse versículo é que Deus está prometendo que uma criança
levada ao conhecimento do evangelho desde pequena nunca se desviará da
fé. Como uma mãe entende esse versículo diante do fato de que seu filho
afastou-se da fé e da igreja? O problema não está em Deus e na Bíblia,
pois o texto não está ensinando isso. Não há aqui uma garantia contra a
apostasia! Em primeiro lugar, é importante afirmar que Provérbios não é
um livro de promessas. De fato, suas afirmações são “máximas”, ou seja,
fatos constatáveis de modo geral na vida. O texto está dizendo que
aquilo que uma criança aprende desde pequena não é esquecido. A verdade é
que a tônica do texto não é exclusivamente religiosa. É de criança que
se aprende a andar de bicicleta, falar outra língua, tocar um
instrumento, decorar versículos, etc. Além disso, devemos também
ressaltar que o texto hebraico diz: “Instrui a criança no seu caminho
...”. A tradução tradicional “deve andar” interpreta o sufixo pronominal
genitivo do hebraico, indo muito além do literal. Todavia, há outras
alternativas de interpretação! “Instruir a criança no caminho dela” pode
significar “instruí-la segundo os objetivos que os pais têm para ela”
(NVI), “instruí-la no caminho devido” (ARA, ARC, A21) ou “instruí-la
conforme os dons que ela tem”. As interpretações são legítimas e o texto
está aberto a mais de um enfoque distinto. No entanto, é bastante
seguro afirmar que o texto não está prometendo segurança de salvação
para a criança que vai à escola dominical, tem pais cristãos e ouve a
Bíblia desde pequeno. O assunto ali discutido não é salvação!
Outro texto geralmente malcompreendido é Filipenses 4.13. Não faz
tanto tempo, trafegando pelas áreas nobres da rica cidade de São Paulo,
contemplei um belo carro importado com um adesivo que ostentava
orgulhosamente o verso de Filipenses. Geralmente, quando se lê este
texto isoladamente, a maioria das pessoas imagina que se trata de uma
promessa de fé. Por meio do poder de Cristo, eu posso alcançar tudo o
que eu quiser! Assim, posso adquirir bens caros, derrotar inimigos
pessoais, subir de posição, etc, por meio de Cristo. Novamente, como nos
outros casos, o texto bíblico não está dizendo isso. Aqui, para que se
entenda corretamente o texto é preciso entender o contexto. O apóstolo
Paulo está escrevendo Filipenses na ocasião de sua prisão, muito
provavelmente em Roma (Fp 1.13-14). Portanto, ele está enfatizando que
por meio de Cristo podemos suportar toda e qualquer situação adversa.
Basta ler o que Paulo diz um pouco antes nos versículos 11 e 12 (NVI):
“Não estou dizendo isso porque esteja necessitado, pois aprendi a
adaptar-me a toda e qualquer circunstância. Sei o que é passar
necessidade e sei o que é ter fartura. Aprendi o segredo de viver
contente em toda e qualquer situação, seja bem alimentado, seja com
fome, tendo muito, ou passando necessidade.” Por incrível que possa
parecer, o texto bíblico significa exatamente o oposto do que muita
gente tem sugerido sem analisá-lo adequadamente.
Numa outra ocasião, em minhas jornadas, encontrei dois cristãos
evangélicos num debate acalorado, discutindo se devemos ou não mentir em
certas situações. Independentemente da discussão sobre a possível
legitimidade de uma inverdade ou omissão da verdade em certas situações
(como o caso de mentir ou omitir para salvar uma vida), o que estamos
discutindo é o uso de textos bíblicos de maneira indevida. O argumento
dos debatentes era o de que Abraão, servo do SENHOR, e amigo de Deus, em
uma situação de necessidade, mentiu (Gn 12.18-20), o que legitimaria o
procedimento. A questão aqui não é tão difícil: o simples relato de um
texto histórico não o define como norma. Muitas vezes o texto bíblico
conta-nos os erros e falhas de seus personagens exatamente para
enaltecer o poder de Deus na vida de um ser humano frágil. Muita gente,
porém, tenta ver méritos e qualidades especiais em cada detalhe de vida
do personagem bíblico, sem contrastar o comportamento dos mesmos com as
normas divinas. Assim, com base nos fatos de que Moisés ficou irado,
Abraão mentiu, Jacó enganou Labão, Raabe mentiu em Jericó, Davi foi
polígamo, etc, alguns tentam justificar seus pecados, afirmando que
homens e mulheres de Deus do passado fizeram tais coisas e não foram
punidos por isso. O equívoco é muito claro. Não podemos fazer isso: um
texto narrativo não é necessariamente normativo.
Esses exemplos mencionados neste breve artigo apenas nos mostram a
necessidade urgente e gritante de um conhecimento mais aprofundado da
arte de interpretação da Bíblia (hermenêutica). Muitas comunidades
cristãs são hoje reféns de doenças hermenêuticas prejudiciais e
destruidoras para a fé. Há grupos perdendo o equilíbrio teológico e
caindo no liberalismo teológico (negação do sobrenatural), numa
filosofia específica, no legalismo, no misticismo desenfreado, no
tradicionalismo irrefletido, entre outros problemas! É preciso estudar a
Bíblia no seu próprio contexto, entendendo elementos históricos,
literários e teológicos para que conheçamos ao máximo a intenção
original do autor. Depois disso, temos a tarefa de destacar os
princípios que estão presentes no texto, para então comparar o que
descobrimos com uma análise teológica mais profunda, a partir de outros
textos importantes que falam do princípio descoberto no texto
inicialmente analisado. Finalmente, devemos fazer a aplicação do
princípio descoberto e teologicamente analisado na realidade do
cotidiano.
A verdade é que a seriedade e o valor do texto sagrado para sempre
ecoará através da história, especialmente quando ouvimos como o próprio
Jesus considerava as Escrituras: “Pois em verdade vos digo: antes que o
céu e a terra passem, de modo nenhum passará uma só letra ou um só traço
da Lei, até que tudo se cumpra” (Mt 5.18 – A21).
Nenhum comentário:
Postar um comentário