Meu alvo nessa breve postagem é mostrar
como alguns aspectos da pós-modernidade se constituem em sérios desafios
à leitura bíblica feita pelos evangélicos, e em especial, pelos
reformados. Mencionarei apenas três aspectos. Há muito mais coisas na
pós-modernidade que influenciam nossa leitura da realidade e dos textos,
mas isso fica para outra vez.
Os
reformados -- uso o termo para me referir aos cristãos evangélicos que
aderem aos credos históricos da Igreja e às confissões reformadas -- têm
tradicionalmente interpretado as Escrituras partindo de alguns
pressupostos. O mais importante deles é que as Escrituras são divinas,
em sua origem, infalíveis e inerrantes no que ensinam, seguras e certas
no seu ensino. Para os cristãos reformados, a Bíblia é a revelação da
verdade. Em decorrência, só existe uma religião certa, a que se encontra
revelada na Bíblia. Logo, no raciocínio reformado, tudo o que é
necessário à vida eterna e à vida cristã aqui nesse mundo estão
claramente reveladas na Escritura. E tais coisas são claramente expostas
nela.
Existem alguns aspectos da pós-modernidade que desafiam esse pressuposto central da interpretação reformada das Escrituras.
1) O conceito de tolerância.
Eu me refiro à idéia contemporânea de total complacência para com o
pensamento de outros quanto à política, sexo, religião, raça, gênero,
valores morais e atitudes pessoais, ao ponto das pessoas nunca
externarem seu próprio ponto de vista de forma a contradizer o ponto de
vista dos outros. Esse tipo de tolerância não deve ser confundida com a
tolerância cristã, pois ela resulta da falta de convicções em questões
filosóficas, morais e religiosas: "A tolerância é a virtude do homem sem
convicções" (G. K. Chesterton). A tolerância da pós-modernidade é
fortalecida pela queda na confiança na verdade, atitude típica de nossa
época.
É
aqui que entra o conceito de "politicamente correto". Significa aquilo
que é aceitável como correto na sociedade onde se vive. É o que se faz
em um grupo sem que ninguém seja ofendido. Por exemplo, não é
"politicamente correto" tomar atitudes ou afirmar coisas que venham a
desagradar pessoas, como emitir valores morais sobre o comportamento
sexual das pessoas. É "politicamente correto" ouvir o que os outros
dizem sem qualquer crítica, reparo ou discordância explícita. Aqui
devemos também notar em especial a preocupação em não ofender as
minorias ou grupos oprimidos: afro-descendentes, mulheres, pobres,
pessoas do 3º mundo. É claro que o Cristianismo nos ensina a não ofender
absolutamente ninguém, mas não por que são minorias ou maioria, e sim
por que são feitas à imagem de Deus.
É
preciso observar que existe uma tolerância exigida do cristão. Devemos
tolerar as pessoas. Todavia, não temos de tolerar suas crenças, quando
estas contrariam a verdade de Deus revelada nas Escrituras. Temos o
dever de ouvir o que elas tem a dizer, e aprender delas naquilo em que
se conformam com a verdade bíblica. Porém, tolerância ao erro, quando a
verdade bíblica está em jogo, é omissão.
A
tolerância tão característica da pós-modernidade pode afetar a
interpretação da Bíblia levando as pessoas a interpretá-la a partir do
conceito de "politicamente correto." Evita-se qualquer leitura,
interpretação ou posicionamento que venha a ser ofensivo à sociedade ou
comunidade a que se ministra. Textos bíblicos que denunciam claramente
determinados comportamentos morais são domesticados com uma leitura
crítica que os reduz a expressões retrógradas típicas dos moralistas
machistas do século I. Textos que anunciam a Cristo como o único caminho
para Deus são interpretados de tal forma a não excluir a salvação em
outras religiões.
2) O inclusivismo.
Num certo sentido, é o resultado do multiculturalismo do mundo
pós-moderno. Não há mais no mundo ocidental um país com uma cultura
única e uma raça homogênea. Países ocidentais são multiculturais e têm
uma mescla de diversas raças. Para que não se seja ofensivo, e para que
se possa conviver harmoniosamente, é necessário ser inclusivista. Isso
significa dar vez e voz a todas as culturas e raças representadas.
Na
sociedade pós-moderna, o conceito ser estende para incluir os grupos
moralmente orientados. Significa especialmente repartir o poder com as
minorias anteriormente oprimidas pelas estruturas de poder, como
afro-descendentes, "gays", mulheres, pobres e raças minoritárias.
Existem
coisas boas do inclusivismo multiculturalista, como por exemplo,
estudos nos meios acadêmicos sobre a cultura de raças minoritárias e
oprimidas no ocidente, como africanos, hispânicos e orientais. Também a
criação de bolsas de estudos e empregos para membros destas minorias
raciais, bem como de grupos oprimidos, como as mulheres. Ainda digno de
nota é a luta contra discriminação baseada tão somente em raça,
religião, postura política e gênero.
Mas
existem coisas que nos preocupam no inclusivismo. A maior de todas é
que o inclusivismo exclui qualquer juízo de valor em termos morais,
religiosos, e de justiça. Tem que ser assim para que o relacionamento
multicultural e multi-moral funcione.
O
inclusivismo acaba também influenciando na interpretação bíblica. Sua
mensagem é abordada do ponto de vista do programa das minorias. Por
exemplo, a chamada "teologia negra," a teologia da libertação, teologias
feministas. Outra coisa é a tendência cada vez mais forte de se
publicarem traduções da Bíblia sem linguagem genérica ofensiva, isto é,
tirando todas as referências a Deus como sendo homem, etc.
3) O relativismo. No
que tange ao campo dos valores e dos conceitos morais e religiosos, é a
idéia de que todos os valores morais e as crenças religiosas são
igualmente válidos e que não se pode julgar entre eles. A verdade
depende das lentes que alguém usa para ler a vida. O importante é que as
pessoas tenham crenças, e não provar que uma delas é certa e a outra
errada. Não há meio de se arbitrar sobre a verdade porque não há
parâmetros absolutos. Desta forma, alguém pode crer em coisas mutuamente
excludentes sem qualquer inconsistência.
Dessa
perspectiva, ninguém pode tentar mudar a opinião de outrem em questões
morais e religiosas. Existem alguns perigos no relativismo quanto à
leitura da Bíblia. Primeiro, o relativismo acaba por minar a
credibilidade em qualquer forma de interpretação que se proponha como a
correta. Segundo, acaba por individualizar a verdade. Cada pessoa tem
sua verdade e ninguém pode alegar que a sua é superior à dos outros.
Portanto, ninguém pode ter a pretensão de converter outros à sua fé.
Muitos
cristãos são tentados a suavizar a sua interpretação da mensagem do
Evangelho, excluindo os elementos que não são "politicamente corretos"
como: pecado, culpa, condenação, ira de Deus, arrependimento, mudança de
vida. Acaba sendo uma tentação de escapar pela forma mais fácil do
dilema entre falar todo o conselho de Deus ou ofender as pessoas.
Esses
são alguns dos perigos que a pós-modernidade traz à leitura e
interpretação das Escrituras. Reconhecemos a contribuição da
pós-modernidade em destacar a participação do contexto e do leitor na
produção de significado, quando se lê um texto. Porém, discordamos que
isso invalide a possibilidade de uma leitura das Escrituras que nos
permita alcançar a mensagem de Deus para nós e de ouvir a voz de Cristo,
como Ele gostaria que ouvíssemos.
Fonte: Augustus Nicodemus
http://tempora-mores.blogspot.com.br/2007/09/lendo-bblia-hoje.html
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